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Como Contemplar o Mundo Como um Cineasta?

Atualizado: 1 de jan.


   Piazza Raffaele De Ferrari, Gênova, Itália.
Movimento na Piazza Raffaele De Ferrari em uma tranquila tarde de domingo. (Gênova, Itália)

O Olhar Cinematográfico do Viajante Contemplativo

Há algum tempo, percebo que a prática do olhar contemplativo, tornou-se uma das ferramentas mais importantes que utilizo durante minhas viagens.


Em postagens anteriores, publiquei uma breve explicação sobre o que seria esse "jeito de observar todas as coisas" de forma mais demorada, atenta e íntima, envolvendo todos os sentidos - visão, audição, tato, olfato e paladar - e inspirado em saberes ancestrais da humanidade.


Essa abordagem ampliou minha percepção do entorno, transformando o passeio, muitas vezes, em uma experiência estética.


Esse hábito é resultado de um longo processo de amadurecimento pessoal e de pesquisa, influenciado por diversos campos do conhecimento - da filosofia às artes, passando pela meditação, mitologia, psicologia profunda e ambiental, arquitetura e urbanismo - que considero como "lentes" capazes de me ajudar a enxergar o mundo e o tema da 'viagem lenta' de forma mais profunda.


Mais recentemente, passei a explorar a "lente cinematográfica", revisitando filmes de dois dos meus diretores preferidos: Wim Wenders e Andrei Tarkovsky.


Ambos abordam o cinema de forma profundamente contemplativa, dedicando atenção especial à fotografia e ao ritmo lento de suas obras; o que me agrada muito.


Ao assistir a esses filmes, percebi como as paisagens e imagens apresentadas me transportavam para um processo de imersão poética, muito similar ao que vivencio quando estou passeando ou viajando.


Notei, então, que havia algumas conexões interessantes entre o olhar contemplativo e o olhar cinematográfico.


Por exemplo, assim como o cineasta compõe, interpreta e narra histórias visuais e sensoriais, o "viajante contemplativo" também pode observar o ambiente ao seu redor como se estivesse contemplando a um filme.

Nesse "filme", o lugar e os acontecimentos cotidianos tornam-se os protagonistas de uma narrativa que se desdobra ao longo da jornada.


Para explorar melhor essas conexões, é importante revisitarmos a história do cinema e sua contribuição para a arte.


Como podemos contemplar o mundo através da "lente cinematográfica"?
Como podemos contemplar o mundo através da 'lente cinematográfica' e (re)descobrir a beleza no cotidiano?

Uma Breve História do Cinema e Sua Importância

O cinema nasceu no final do século XIX, quando os irmãos Lumière apresentaram ao mundo as primeiras imagens em movimento projetadas, como no célebre curta A Chegada de um Trem à Estação de 1895.


Essa invenção revolucionária marcou o início de uma nova forma de registrar a realidade e criar narrativas, encantando as audiências com sua capacidade de capturar momentos efêmeros e reproduzi-los como magia em uma tela.


Nas décadas seguintes, o cinema passou por rápidas transformações. No início do século XX, diretores como Georges Méliès começaram a explorar o potencial narrativo e técnico dessa nova arte, introduzindo efeitos especiais e criando histórias fantásticas, como Viagem à Lua (1902), um filme mudo francês inspirado em dois romances muito populares na época: 'Da Terra à Lua' (1865) de Julio Verne e 'Os Primeiros Homens na Lua' (1901) de H. G. Wells.


Fragmento do filme 'Le Voyage dans la lune' (1902).
Fragmento colorizado a mão do filme mudo 'Le Voyage dans la lune' (1902).

Com o advento do cinema sonoro na década de 1920, o impacto das produções cinematográficas cresceu ainda mais, tornando-se uma poderosa ferramenta de entretenimento, comunicação e expressão artística.


Desde então, ele evoluiu de uma simples inovação técnica para se tornar uma das mais poderosas formas de arte.


Mestres como Charlie Chaplin, Akira Kurosawa, Andrei Tarkovsky, Agnès Varda e tantos outros transformaram o cinema em uma ferramenta capaz de narrar histórias universais, expressar emoções complexas e explorar questões profundas sobre a condição humana.


O cinema é importante porque se estabelece como uma linguagem visual e sonora que transcende fronteiras culturais e linguísticas. Combinando luz, som, movimento e narrativa, ele cria experiências imersivas que dialogam com públicos de diferentes épocas e lugares.

Como arte, o cinema nos ensina a ver o mundo com outros olhos, incentivando a sensibilidade, a empatia e a criatividade.


Ao observarmos como os elementos cinematográficos - a luz, os enquadramentos, os sons e os ritmos narrativos - se conectam à prática do olhar contemplativo, percebemos uma aproximação com alguns princípios da viagem lenta.


Na minha perspectiva, ambas as abordagens nos convidam a enxergar o mundo com maior profundidade, ajudando-nos a resgatar uma sensibilidade muitas vezes oculta dentro de nós.


Considero que esse seja um dos papéis mais importantes das artes em geral: oferecer um refúgio para as angústias humanas; um espaço para expressão de sentimentos indizíveis; um conforto para a alma através da manifestação física da imaginação e uma "lente" de observação do cotidiano.

Refletir sobre como as artes podem nos tornar mais sensíveis, atentos e conscientes é repensar os motivos pelos quais vivemos nossas vidas em um certo estado de "cegueira", passando de um evento rotineiro a outro com os sentidos amortecidos.


Ao nos expor à arte do cinema, por exemplo, aprimoramos nosso olhar, permitindo-nos perceber a singularidade das histórias, das emoções e das atmosferas ao nosso redor.


Esse exercício amplia nossa capacidade de nos conectar com o mundo de forma mais profunda.


Cena do filme 'Stalker' de 1979 dirigido por Andrei Tarkovsky.
Cena do icônico filme 'Stalker' de 1979 dirigido por Andrei Tarkovsky.

Imagens Em Movimento e o Olhar Contemplativo

No cinema, as imagens em movimento capturam gestos, paisagens e momentos cotidianos, revelando sua profundidade e beleza.


Considero que, na viagem lenta, esse mesmo princípio se aplica. Por exemplo: ao desacelerarmos e prestarmos atenção aos detalhes – as expressões das pessoas em uma praça, o som do vento passando por entre as árvores, o movimento das ondas em uma praia – enxergamos o extraordinário no comum.


Assim como um cineasta escolhe seus enquadramentos, o viajante contempla o mundo, moldando sua experiência com base no que observa. Ambos tornam-se autores de suas próprias narrativas, guiados pela intenção ao selecionar o que desejam capturar ou vivenciar.

Pensando no elemento da montagem, o cineasta organiza as cenas em uma sequência de imagens para criar um significado àquilo que estamos assistindo.


De maneira semelhante, o "viajante contemplativo" percebe a "montagem" do dia a dia: o contraste entre a agitação de uma feira pela manhã e o silêncio de um parque à tarde, ou o ritmo de uma cidade que muda ao longo das horas.


Essa percepção transforma uma simples caminhada em uma narrativa rica, onde cada momento se conecta ao próximo, revelando uma harmonia que só se torna visível com um olhar atento.


Esse modo de enxergar o entorno, que denomino de "viagem como experiência estética", oferece uma poderosa ferramenta para transformar nossos passeios em vivências mais profundas e satisfatórias.


Sob os pórticos de Gênova, o olhar repousa sobre o vai e vem dos pedestres em um dia nublado.
Sob os pórticos de Gênova, o olhar repousa sobre o vai e vem dos pedestres em um dia nublado. (Foto: Arquivo Pessoal)

Capturando Atmosferas Durante a Viagem


A luz e a cor criam atmosferas únicas nas produções cinematográficas, assim como em um passeio contemplativo ou durante uma viagem.


Observar como a luz do sol atravessa as janelas de uma catedral, como as cores vibrantes das frutas de um mercado de rua se destacam, ou como o azul do entardecer transforma uma rua movimentada em algo quase onírico, são formas de mergulhar no presente.

Assim, "viajantes contemplativos" aprendem a "ler" os ambientes da mesma forma que um cineasta trabalha com sua paleta de luz e cor.


O filme '2001 - Uma Odisseia no Espaço' tem como protagonista a música 'Assim Falou Zaratrusta' de Richard Straussde
No filme '2001: Uma Odisseia no Espaço', a música eleva as cenas a um nível épico. (foto: otemponocinema)

O Som Como Narrativa Sensorial

Outro aspecto importante da 'grande arte' é o som. Quantas vezes assitimos a um filme em que a trilha sonora se torna quase um protagonista?


No filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, por exemplo, a música Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss, assume esse papel, elevando as cenas a um nível épico.


Subestimar esse componete em uma obra cinematográfica é empobrecer tanto a atmosfera imersiva quanto a própria narrativa.


Da mesma forma, quando optamos por fazer um passeio contemplativo, o som torna-se um guia sensorial que nos conecta ao ambiente e proporciona relaxamento e bem-estar.

Na viagem lenta, o ruído dos passos em uma rua antiga, o canto dos pássaros em um parque ou o barulho do vento em uma montanha criam uma 'ambientação sonora' única que amplia e enriquece nossa percepção, bem como ajuda a construir a história do lugar.


Esse tipo de "escuta ativa" é uma prática que permite desacelerar e absorver o momento plenamente.


Vale ressaltar que a 'ausência do som', ou melhor dizendo, o silêncio, também pode criar uma atmosfera única, muitas vezes de caráter contemplativo, íntimo e até sagrado.


No documentário de 2005, 'Into Great Silence', de Philip Gröning, é retratada a vida cotidiana dos monges cartuxos da Grande Chartreuse, um mosteiro no alto dos Alpes franceses.


A obra consiste apenas em imagens e sons que capturam o ritmo lento da vida monástica, apresentando dialogos entre os protagonistas em raros momentos.


A beleza do filme está justamente em levar o espectador para dentro do mosteiro e fazê-lo experimentar aquela atmosfera de calma e contemplação.


Cena do documentário 'Die große Stille é um documentário de 2005 dirigido por Philip Gröning. (foto: vprogids.nl)
Cena do documentário'O Grande Silêncio' de 2005. (foto: vprogids.nl)

Metáforas Visuais e Simbolismos do Cotidiano

Em "2001: Uma Odisseia no Espaço", o monólito negro que aparece em uma das cenas mais icônicas do cinema não é apenas um objeto físico, mas uma metáfora do desconhecido, do progresso e da evolução da humanidade.


A metáfora é uma ferramenta poderosa na arte porque amplia o significado e permite uma conexão emocional e intelectual entre a obra e o público.


Em vez de transmitir mensagens de forma literal, a metáfora usa símbolos, imagens ou gestos para evocar ideias mais complexas, muitas vezes ressoando de maneira subjetiva e profunda.

Os cineastas frequentemente utilizam metáforas visuais para transmitir significados profundos.


Nos filmes de Andrei Tarkovski, como Solaris (1972), Stalker (1979) e O Espelho (1975), o diretor utiliza paisagens e ambientes como metáforas da mente humana e dos dilemas existenciais, destacando-se por cenas repletas de simbolismo, nas quais os personagens exploram questões filosóficas e espirituais universais.


Cada imagem, som e diálogo cria uma jornada poética e metafísica que ressoa de maneira única em cada espectador.


Esse tipo de cinema, que gosto de chamar de "experiência poética", oferece um tempo diferente, quase suspenso, criando um espaço de refúgio e reflexão para o mundo interior.


Habituar-se a explorar gêneros cinematográficos além do puro entretenimento pode enriquecer nosso olhar para o entorno: seja a cidade onde vivemos, os lugares que visitamos ou os ambientes que exploramos em passeios. Essa prática amplia nossa visão de mundo e refina nossa percepção.

Esse é um dos princípios da prática do 'olhar contemplativo' que frequentemente menciono em minhas postagens aqui e no Instagram.


Redescobrir o modo como observamos todas as coisas - utilizando diversas 'lentes' como a arte e o cinema - pode transformar uma viagem ou passeio.


Passamos a perceber detalhes que nos tornam atentos, sensíveis e conectados ao entorno, e, com o tempo, mais alinhados com nosso próprio corpo e com a vida.


Encontar simbolismos nos elementos que compoem um ambiente - como uma paisagem nublada que sugere introspecção, uma edificação antiga que evocar a desaceleração do tempo, ou o silêncio do átrio de uma catedral que despertar uma experiência estética única - transforma o simples ato de observar em algo significativo.

Essa interpretação atenta e subjetiva nos permite olhar além da superfície, criar significados pessoais e enriquecer profundamente a experiência de viagem.


Desacelerar e observar os detalhes transforma o entorno em uma 'experiência estética'.
Desacelerar e observar os detalhes transforma o entorno em uma 'experiência estética'.

Explorando o Mundo Através da Arte e da Contemplação

O ato de viajar, assim como o de observar uma obra de arte ou um filme, é uma oportunidade para enxergar além da superfície.


Quando nos permitimos desacelerar, prestar atenção aos sons, às imagens e aos simbolismos do cotidiano, criamos uma experiência que vai muito além do deslocamento físico: ela se torna um movimento interno de conexão e reflexão.


A prática do olhar contemplativo – seja ao explorar uma rua histórica, ouvir o vento em uma montanha ou encontrar inspiração em um filme – nos ensina a valorizar os detalhes, a construir significados pessoais e a viver o momento de forma mais plena.


Em um mundo cada vez mais apressado e voltado para o consumo imediato, esse olhar atento e sensível é um convite para reaprender a nos conectar com o que realmente importa: a profundidade das coisas simples, o encontro com o outro e, acima de tudo, conosco mesmos.

Viajar, assim, deixa de ser apenas um movimento de ir e vir; torna-se uma forma de existir, de interpretar o mundo como uma obra em constante transformação, reconhecendo que o extraordinário frequentemente reside nas pequenas coisas que nos cercam.


No filme 'Lost in Translation' de Sophia Coppola, a cidade de Tóquio cria uma atmosfera íntima perfeita para a temática da obra. (foto: nofilmschool.com)
Em 'Lost in Translation', a locação destaca sua atmosfera íntima. (foto: nofilmschool.com)

Essa perspectiva ampliada sobre o 'ato de viajar' para além do turismo convencional é muito pessoal.


Considero que, para dar um passo além com relação à qualidade do pouco tempo livre que temos, podemos utilizar diversas 'lentes' – o cinema, por exemplo, pode ser uma delas.


Praticar novas maneiras de contemplar o mundo pode nos reconectar com dimensões sutis da nossa existência, que até então foram nubladas pelas demandas cotidianas.

Um exemplo disso pode ser encontrado no filme Lost in Translation (2003), de Sofia Coppola, cuja narrativa explora não apenas a relação íntima entre os personagens, mas também a interação deles com a paisagem urbana de Tóquio.


As locações na cidade – desde os neons vibrantes de Shinjuku até os momentos silenciosos em templos tradicionais – não servem apenas como cenário, mas como uma extensão emocional da jornada interna dos protagonistas.


Quem nunca esteve em um lugar com uma atmosfera tão imersiva que o tempo parecia suspenso?

O que proponho nesse texto é um convite à pratica de um olhar mais atento e sensível através da arte, utilizando todos os órgãos dos sentidos, no intuito de nos tornar mais conscientes do entorno e, consequentemente, de nós mesmos.



📝 PRINCIPAIS REFERÊNCIAS DO POST*:

A Paisagem no cinema de Wim Wenders. India Mara Martins. Coedição Faperj (2014)

A Lógica das Imagens. Wim Wenders. Edições 70. (2010)

Como os artistas veem o mundo? Will Gompertz. Ed. Zahar (2023)

Esculpir o tempo. Andrei Tarkovski. Ed. Martins Fontes (2019)

Manual Prático Mindfulness: Curiosidade e Aceitação. Marcelo Demarzo. Ed. Palas Athena (2015)

Modos de Ver. John Berger. Fósforo Editora (2023)

Os Olhos da Pele: A Arquitetura e os Sentidos. Juhani Pallasmaa. Ed: Bookman (2011)

Lost in Translation (2003) filme de Sofia Coppola.

Stalker (1979) filme de Andrei Tarkovsky.

Vídeo Canal Viajar Sem Pressa: Explorando Gênova Lentamente em 2 Dias.


🐌 GUIA BÁSICO DO SLOW TRAVEL:

*Nota: Este post é um editorial.

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